O gasto do governo federal com pessoal tem caído no governo de Jair Bolsonaro. O movimento tem ligação com o congelamento salarial vigente desde 2019 e com a falta de reposição de vagas abertas.
O movimento é comemorado pelo governo, sobretudo pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele diz que foi feita uma “reforma administrativa invisível” em sua gestão. A proposta de reforma enviada pelo governo ao Congresso em 2020 praticamente não avançou.
Neste texto, o Nexo mostra os números dessa redução de despesas com pessoal e ouve especialistas sobre os possíveis efeitos desse movimento ao longo dos próximos anos. A avaliação é que a queda não necessariamente garante ganho de eficiência na prestação de serviços e no saneamento das contas públicas.
A queda nos gastos com funcionalismo
Alguns dados diferentes ilustram a queda no nível de gastos do governo federal com servidores. Números do Tesouro Nacional mostram, por exemplo, que o gasto real com pessoal e encargos sociais (como aposentadorias e sentenças judiciais do funcionalismo) chegou, no primeiro semestre de 2022, ao menor patamar desde 2008. É o que mostra o gráfico abaixo.
GASTOS REAIS
O gráfico traz dados que já foram corrigidos pela inflação. Portanto, ele mostra como, em níveis reais, os R$ 157,5 bilhões gastos entre janeiro e junho de 2022 ficam abaixo da comparação do mesmo período em todos os anos desde 2009.
Há outras maneiras de olhar para a despesa do governo federal com servidores. Uma delas é colocando os valores em relação ao PIB (Produto Interno Bruto), que soma todos os bens e serviços produzidos em um país em determinado período de tempo.
De forma geral, essa relação permite entender quanto é gasto com servidores na comparação com o tamanho da economia brasileira como um todo. Nessa ótica, o gasto com servidores em 2021 foi o menor em toda a série histórica do Tesouro Nacional, iniciada em 1997: somente 3,79% do PIB foi despendido com pessoal. Em 2022, a projeção do Ministério da Economia é que caia ainda mais, para cerca de 3,4%.
Por que houve queda
CONGELAMENTO SALARIAL
Os mais recentes reajustes para servidores federais ocorreram em 2018, embora algumas categorias com maior remuneração tenham tido aumento em 2019. Desde então, o valor nominal ficou igual – ou seja, não houve nem reposição pela inflação. Em 2020, devido à pandemia de covid-19, governo e Congresso fecharam acordo e definiram o congelamento salarial do funcionalismo público federal, estadual e municipal até dezembro de 2021. Para 2022, Bolsonaro chegou a prometer um reajuste a todos os servidores federais em caso de aprovação da PEC dos Precatórios. A proposta foi aprovada, mas o governo reservou dinheiro apenas para aumentos de servidores da segurança pública – Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Departamento Penitenciário. O caso desencadeou uma crise do Executivo com o funcionalismo. Houve mobilizações como greves e paralisações. Nenhum aumento saiu do papel – a promessa de reajuste ficou para 2023.
REDUÇÃO DE PESSOAL
Dados do Ipea mostram que o número de pessoas vinculadas ao serviço público federal está em queda no Brasil. Em 2019, 939 mil pessoas tinham vínculo com o governo federal. É o menor nível desde 2008, quando o número foi praticamente idêntico. Essa redução de pessoal tem ligação com medidas que restringiram a realização de concursos públicos, impedindo a reposição plena de vagas abertas – sobretudo as deixadas por aposentadorias. Em um evento da União Nacional de Entidades do Comércio e Serviço, Bolsonaro afirmou na terça-feira (30) que, se for reeleito, irá “evitar” a realização de novos concursos públicos, sob argumento de reduzir a pressão sobre as finanças públicas e proteger os servidores ativos.
A comparação com outros países
No geral, o Brasil tem proporcionalmente menos servidores públicos do que países que se propõem a ter um tamanho de Estado parecido em termos de bem-estar social – conforme especialistas falaram ao Nexo no final de 2021. Apesar disso, o funcionalismo brasileiro é tido como um dos mais caros do mundo, segundo levantamentos recentes.
De acordo com um estudo de 2020 elaborado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), o Brasil ocupa a sétima posição num ranking dos países que mais gastam com o funcionalismo. Foram analisadas as contas de 70 países com maiores gastos, considerando União, estados e municípios. O país ficou atrás de: Arábia Saudita, Dinamarca, Jordânia, África do Sul, Noruega e Islândia.
SERVIDOR DO PODER JUDICIÁRIO MANUSEIA PILHA DE PROCESSOS
Um levantamento da Secretaria do Tesouro Nacional a partir de informações do FMI (Fundo Monetário Internacional) também coloca o Brasil no topo dos países com maior despesa com o funcionalismo.
Os gastos elevados com o funcionalismo têm como pano de fundo desigualdades e distorções, com carreiras de elite que são privilegiadas e acabam puxando a média dos gastos para cima.
Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que as maiores remunerações, por nível federativo, estão concentradas nos servidores federais – que são minoria. Em termos da distribuição de remuneração nos Poderes, a concentração dos maiores valores é no Judiciário.
Os efeitos da queda de gastos nas contas públicas
O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma comemorar a redução de gastos com servidores, dizendo que ela é também resultado de avanços de digitalização de serviços. Guedes se refere a essa queda como uma “reforma administrativa invisível” ou “silenciosa”. Em 2020, o governo chegou a entregar ao Congresso uma proposta de reforma administrativa, que pouco avançou.
Ao Nexo, Ricardo Corrêa Gomes, professor da FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), afirmou que a melhora das contas públicas resultante dessa queda do gasto com pessoal por enquanto se restringe ao curto prazo. “Em uma empresa privada, quando se quer cortar custos, o jeito mais rápido é demitir gente”, afirmou. O equivalente no setor público seria, nesse sentido, reduzir pessoal via restrição de concursos e não-reposição de saídas.
“É uma forma de reduzir gastos. Mas tenho dúvidas se é a melhor forma”, disse o professor da FGV. O argumento é que, a depender de como essa redução de despesas com pessoal acontece, os efeitos de longo prazo podem ser piores do que os ganhos de curto prazo.
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Entre esses efeitos elencados por Corrêa Gomes, está a fuga de cérebros, com desincentivo para que pesquisadores e cientistas permaneçam no Brasil. O conceito de fuga de cérebros se refere ao êxodo de profissionais de alto nível educacional, motivados pela busca de melhores condições de trabalho no exterior. O setor público absorve parte importante desses profissionais no Brasil – seja em universidades ou outras instituições. Por isso, a queda do gasto com pessoal pode catalisar esse processo.
O professor da FGV disse que é cedo para dizer se esse processo de queda de gasto com pessoal precisará ser revertido em algum momento. Em parte por causa dos avanços de digitalização, que podem eliminar (ou reduzir) a necessidade de recontratar. Mas, caso esse movimento de recontratação aconteça, “você vai ter que contratar outras pessoas depois, vai ter que treinar, investir nessas pessoas. E aí você vai ter servidores mal treinados, mal qualificados para prestar serviços. Não tem como fazer bolo bom com farinha ruim”, disse o professor da FGV.
Por fim, Corrêa Gomes também citou os efeitos de longo prazo de, por exemplo, reduzir gastos com pessoal em áreas estratégicas, como educação. “O dinheiro que você economiza com educação, com as crianças que estão na escola hoje, daqui a 20 anos você vê o efeito que isso vai ter na sociedade”, disse. Ou seja, impactos negativos de longo prazo podem até mesmo prejudicar as contas públicas.
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“Não sou contra cortar gasto com pessoal”, disse Corrêa Gomes. A queda da despesa com pessoal, portanto, não é um problema por si só. “Só acho que isso tem que ser feito com critério, com o planejamento, de forma racional”, afirmou.
Segundo o professor, a “reforma invisível” de Guedes não segue critérios para proteger o Estado de eventuais impactos de longo prazo. Ou seja, há formas de fazer com que essas mudanças sejam mais eficientes, mas isso implica planejamento e análise criteriosa das estruturas do funcionalismo.
“É preciso fazer um estudo detalhado de quem são os servidores públicos, onde estão, quais são as competências. Porque às vezes temos muitos servidores em órgãos que não precisam ter tantos servidores, e temos muito poucos servidores em outros órgãos que deveriam ter mais gente.”
Os efeitos nos serviços públicos
Felix Lopez, pesquisador do Ipea e coordenador da plataforma Atlas do Estado Brasileiro, disse ao Nexo que o efeito principal do corte do gasto com pessoal é a redução na qualidade dos serviços públicos no país.
“Sem pessoas para desempenhar as tarefas e funções necessárias às atividades requeridas, parte delas não se realiza”, afirmou. Um exemplo dado foi o da Receita Federal: se a operação for prejudicada pela falta de pessoal, isso pode levar até a problemas fiscais, já que pode atrapalhar a própria arrecadação do governo.
Lopez também falou sobre como a digitalização dos serviços públicos – frequentemente enaltecida por Guedes – se insere nesse contexto. “Mesmo levando em conta que a digitalização – panaceia sempre evocada para justificar reduções no total de pessoas no setor público federal – de alguns serviços ajuda a reduzir a demanda por recomposição de pessoal, os serviços públicos mais essenciais são os intensivos em mão de obra”. Entre esses serviços, estão saúde, educação e assistência social.
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Assim como Corrêa Gomes, o pesquisador do Ipea também criticou a forma como a redução de gastos com pessoal tem ocorrido a nível federal, sem planejamento específico para cada área. “Sem esse planejamento setorial, é difícil organizar o processo de recomposição, por áreas e por políticas de uma forma racional e razoável”, afirmou.
Uma possível queda na qualidade dos serviços prestados à população, segundo o coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, pode gerar efeitos de longo prazo na relação do cidadão com o Estado. “Inúmeras pesquisas apontam que quando os serviços públicos reduzem sua qualidade, o cidadão reduz sua adesão ao regime, à convicção de que podemos confiar no setor público e, por tabela, confiar na sociedade”, disse.
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