Histórico
A Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial de Empresas e de Falências (Lei 11.101/2005 “LRF”) traz em seu artigo 57 a obrigatoriedade das empresas em recuperação judicial apresentarem certidões de regularidade fiscal no âmbito municipal, estadual e federal (“CNDs”), assim como o art. 191-A do Código Tributário Nacional (Lei Complementar 5.172/66, “CTN”) como condição para a homologação do Plano de recuperação judicial e concessão da recuperação judicial.
Não obstante as previsões legais, ao longo do tempo, as CNDs vinham sendo dispensadas pelos juízos recuperacionais por diversas razões: uma delas era a de que não havia regulamentação do parcelamento especial previsto no art. 68 da LRF, que veio a ser sanado pela Lei 13.043/2014, ao menos no âmbito federal, que, entretanto, trazia como condição a desistência expressa e irrevogável de eventuais recursos ou ações e renúncia a direitos que as fundamentavam. Além disso, a concessão do parcelamento dependia de prazo aprovado pela Fazenda, assim como garantias. Com isso, firmou-se o entendimento de que a legislação, de fato, não regulamentava a previsão do art. 68, eis que o parcelamento era um direito da empresa em crise e não deveria ficar sujeito às condicionantes da lei. E mais, ainda não haviam sido editadas leis em âmbito estadual e municipal, o justificando a dispensa das CNDs. O STJ referendava a tese, conforme REsp 187404/MT¹ .
Outra razão era a aparente inconstitucionalidade dos artigos 57 da LRF e do art. 191-A do CTN por vincular a apresentação de CNDs quando tais débitos sequer se submetem à recuperação judicial, constituindo forma indireta de cobrança de tributos, o que contrariava a jurisprudência do STF.
Esse entendimento até então pacífico começou a ser questionado de forma mais veemente pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) após a edição de outras normas para tratamento do débito tributário além da própria Lei 13.043/2014, a celebração de Negócio Jurídico Processual (Portaria PGFN 742/18) a Transação Tributária (Lei 13.988/2020), o que daria aos contribuintes em recuperação judicial opções para enfrentamento de seu passivo tributário com a concessão de descontos mais agressivos para a regularização dessa dívida.
O Ministro do STF Luiz Fux chegou a proferir decisão em caráter liminar na Reclamação 43.169 entendendo pela suspensão da decisão proferida pela 3ª Turma do STJ nos autos do REsp 1.864.625/SP, que autorizava a dispensa das CNDs, tendo em vista que a falta de regularização tributária poderia gerar constrições que colocariam em risco sua reestruturação
²Essa liminar perdeu o efeito, pois posteriormente o Ministro Relator Dias Toffoli julgou que se trata de interpretação de legislação infraconstitucional que não possui repercussão direta no texto da Constituição Federal, não cabendo apreciação do STF.
Houve ainda a reforma da LRF (pela Lei 14.112/2020), que promoveu alterações significativas na lei de insolvência, mantendo-se a exigência das CNDs, aumentando ainda o prazo de parcelamento de 84 para 120 meses (art. 10-A, V da Lei 10.522/2002), reforçando assim a opção do legislador para que a recuperação da empresa em crise envolvesse também a solução do crédito tributário, ainda que não subordinado ao regime recuperacional.
Assim, por consequência dessa reforma, houve a desafetação do Tema 987 pelo STJ, que até então suspendia as execuções fiscais em andamento, permitindo o prosseguimento destes processos em face das empresas em recuperação judicial.
Momento atual
Diante desse cenário, alguns tribunais vêm proferindo decisões exigindo as CNDs para a concessão da Recuperação Judicial. No Rio de Janeiro, um acórdão da 16ª Câmara Cível decidiu pela anulação da homologação do plano de recuperação judicial de uma rede de hotéis que havia sido dispensada da apresentação das CNDs em Agravo de Instrumento interposto pela União³.
Nesse acórdão, o Relator esclarece que não se trata de quitação integral do débito, mas de tratamento da dívida tributária, que, em razão da combinação de dispensa das certidões aliada à suspensão das execuções fiscais – hoje não mais em razão da desafetação do Tema 987 –, o crédito tributário teria sido marginalizado em detrimento de dívidas privadas. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgamento recente, manteve decisão de 1ª instância, que não homologou o plano de recuperação de empresa que deixou de apresentar CND sob o argumento que os artigos 57 da LRF e 191-A do CTN não tiveram inconstitucionalidade reconhecida e, portanto, vigentes e ainda sob o fundamento que “no regime da livre concorrência constitucional brasileiro (Lei Maior, art. 170, IV), da existência concomitante de empresas privilegiadas, que não pagam impostos, em posição de vantagem irrazoável e desproporcional sobre todas as demais, que arcam com esse pesado ônus”⁴.
Outro acórdão recente do TJSP confirma a vigência do art. 57 da LRF, mas flexibiliza o prazo para apresentação das CNDs desde que comprovados os esforços das recuperandas no sentido da regularização fiscal e a real necessidade da dilação do prazo para apresentação das certidões⁵.
No mesmo sentido, Fábio Ulhoa Coelho explica que, quando o art. 57 não é cumprido, duas medidas se impõem: i) suspensão do processo de recuperação até a apresentação das CNDs pela sociedade; ii) esclarecimento de que, com a suspensão da recuperação judicial, se suspende também o stay period, e as execuções podem ter prosseguimento, inclusive as concursais⁶.
De outro lado, Marcelo Barbosa Sacramone⁷, outro expoente no tema, entende que o art. 57 vai contra o sistema da LRF, como também é inconstitucional, pois “a exigência das CNDs para a concessão da recuperação judicial, tornaria inviável, na prática, o instituto da recuperação ao impor ônus excessivo ao devedor e criaria tratamento privilegiado à União, aos Estados e Municípios, pois condicionaria a possibilidade de reestruturação de todos os outros créditos à regularidade do débito tributário”, que não é sequer submetido à recuperação judicial.
Conclusão
O que se percebe é que está em andamento uma mudança de entendimento acerca da exigência de CNDs para a concessão da recuperação judicial, não obstante não haja pacificação do assunto. A doutrina ainda parece dividida.
Todavia, não obstante à alteração do cenário em favor do fisco, não se pode modificar a realidade. Empresas em recuperação judicial normalmente enfrentam graves problemas tributários, pois, diante da falta de caixa, acabam por privilegiar o pagamento de salários, insumos e capital de giro em detrimento dos tributos, até que possuam caixa suficiente ao pagamento de todos. Fazer o contrário, importaria em interromper suas atividades.
Há muito, as empresas em crise vêm buscando formas de regularização tributária com parcelamentos que se adequem ao seu fluxo de caixa – exatamente como se propõe aos demais credores na recuperação judicial – ou quitando sua dívida, ainda que parcialmente, utilizando-se de prejuízos fiscais acumulados, de forma que se possa saldar suas obrigações, evitando ainda o risco de bloqueios judiciais e penhora de ativos importantes.
Vê-se que os governos, por sua vez, também se preocuparam em criar alternativas para viabilizar o pagamento das dívidas tributárias por estes contribuintes, até porque o insucesso do empreendimento geralmente eleva o risco de nada receber. Contudo, entendemos que ainda não foram alcançadas as condições suficientemente necessárias que permitirão a regularização fiscal dessas empresas, inclusive em função do momento da economia, que ainda não permitiu a recomposição do caixa dessas empresas.
Fundamental ainda que o poder público atue de forma colaborativa, a fim de proporcionar não somente o soerguimento desses negócios, mas também o atendimento ao interesse público, seja pelo recebimento de tributos, ainda que não integrais, seja pela manutenção de empregos e cumprimento da função social da empresa, motor do desenvolvimento da sociedade brasileira.
¹https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=30522646&num_registro=201000540484&data=20130821&tipo=5&formato=PDF
²A outra razão para a concessão da liminar era a de que houve afronta à Súmula Vinculante 10, pois a decisão proferida pelo STJ teria promovido o afastamento do art. 57 da LRF sem que tal decisão tivesse sido levada ao plenário.
³Agravo de Instrumento nº: 0046087-14.2020.8.19.0000 TJ RJ.
⁴Agravo de Instrumento 2067179-82.2021.8.26.0000 TJSP
⁵Agravo de Instrumento 2066967-61.2021.8.26.0000 TJSP
⁶COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. rev. atual. e ampl. Thomson Reuters. 2021. São Paulo. p.239/240
⁷SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone.2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.e-book.
Por: Luciana Abreu, advogado especialista em Direito Empresarial. Pós-graduada em Direito Empresarial e Direito Tributário, MBA em Gestão Estratégica e Econômica de Negócios e especialização em Administração Judicial (TJRJ). Sócia e head das Áreas Empresarial e Cível do Gameiro Advogados.
Fonte: https://www.jornalcontabil.com.br/exigencia-de-certidoes-negativas-de-debitos-tributarios-para-a-concessao-da-recuperacao-judicial/?amp