O princípio da insignificância [1], como corolário do princípio da ofensividade, representa importante instrumento de política criminal cuja natureza jurídica é de causa excludente de tipicidade. Trata-se de orientação importante quanto à necessidade de análise da ofensa causada ao bem jurídico para a configuração da tipicidade material [2]. Além disso, apesar de ser considerado princípio na tradição brasileira, aparentemente é mais adequado considerar a insignificância como regra de interpretação, a fim de se verificar a escassa afetação do bem jurídico penal [3].
Ao longo dos últimos anos, houve a consolidação do princípio perante os tribunais brasileiros, notadamente após a decisão proferida no Habeas Corpus nº 84.412, de relatoria do ministro Celso de Mello, no qual se fixaram os parâmetros para sua aplicação, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada [4].
Além disso, o emprego do instituto não ficou restrito aos crimes patrimoniais cujo bem jurídico é individual, o que permitia o exame normativo da lesão ao bem jurídico de forma mais simplória. Isso porque os tribunais admitiram o princípio da insignificância em relação aos crimes tributários, os quais visam a proteger bem jurídico de ordem supraindividual [5].
O percurso é interessante porque autorizou o reconhecimento da exclusão da tipicidade nos crimes fiscais em razão do artigo 20 da Lei nº 10.522/02, que dispensava execuções fiscais em valor igual ou inferir a R$ 10 mil [6]. O raciocínio era simples, pois se o Direito Tributário não detinha interesse na cobrança dos valores, seria incoerente autorizar o uso do Direito Penal, tendo tal postura sido adotada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo [7].
Depois disso, referido dispositivo foi modificado, dando-se a faculdade de que o procurador-geral da Fazenda Nacional pudesse estabelecer a quantia a não ser objeto de execução fiscal, o que de fato ocorreu por meio das Portarias 75/2012 e 130/2012, ambas do Ministério da Fazenda, com o aumento para vinte mil reais. A modificação prontamente gerou impactos nos crimes tributários, vez que autorizou a aplicação do princípio da insignificância em novo patamar.
É verdade também que o Superior Tribunal de Justiça inicialmente resistiu à ideia, sob o argumento de que o ato administrativo interferiria na caracterização da tipicidade [8], em especial, na subordinação do exercício da jurisdição penal à iniciativa da autoridade fazendária. No entanto, o Supremo Tribunal Federal não vislumbrou qualquer problema quanto à norma, aplicando o novo entendimento sem qualquer restrição [9], o que gerou a revisão do entendimento pela Corte Cidadã [10].
Como contraponto à perspectiva apresentada pela Corte Cidadã, pode-se afirmar que há outros tipos penais em que normativas infralegais interferem na tipicidade penal, exemplo disso é o crime de evasão de divisas (artigo 22, Lei nº 7.492/86). Isso acontece porque, no parágrafo único, o tipo penal prevê a criminalização da conduta de manter, no exterior, depósitos não declarados à repartição federal competente, compreendendo-se como tal o Bacen, firmando-se a jurisprudência pela necessidade de declaração do valor existente no exterior no dia 31 de dezembro.
Significa dizer que “revela-se necessária a informação e comunicação à autoridade competente de uma fotografia do patrimônio no último dia do ano, e não de um filme da evolução do patrimônio depositado ao longo do ano” [11]. Com efeito, esse valor a ser declarado no último dia do ano é definido atualmente pela resolução CMN nº 4.481/2020, a qual impõe a obrigação de declarar bens e valores de quantia igual ou superior a US$ 1 milhão. Assim, a normativa infralegal incorporou-se ao conteúdo do artigo 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86, impactando na estrutura típica do delito [12].
Além disso, é interessante notar que nos crimes patrimoniais não há consenso acerca do valor-limite para fins de incidência do princípio da insignificância, reservando-se ao Poder Judiciário a análise caso a caso [13], com grandes oscilações de valores. Por outro lado, no que tange aos crimes fiscais, prevaleceu a quantia objetiva de acordo com as normas administrativas examinadas [14].
Consolidada a posição acima descrita em relação ao patamar dos crimes tributários no âmbito federal, iniciou-se debate sobre o quantum alusivo aos tributos estaduais [15]. Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o valor das portarias do Ministério da Fazenda seria inaplicável para incidência do princípio da insignificância no âmbito municipal ou estadual, no entanto, admitiu que os entes seriam responsáveis pela política de renúncia às execuções fiscais, de modo que o entendimento seria aplicado a partir das legislações locais.
Desse modo, os estados editaram normas regulamentando o tema e suas respectivas execuções fiscais levarão em conta o critério fixado em legislação estadual [16]. A título de exemplo, o estado do Paraná, por meio da Lei nº. 18.292/2014, fixou o valor mínimo de R$ 35 mil para execuções fiscais para créditos tributários relativos ao ICMS [17].
Nesse contexto, tratando especificamente da realidade paranaense, em casos cujo valor devido ao fisco relativo ao ICMS, sem a inclusão de juros e multa, não ultrapasse a quantia de R$ 35 mil, haverá a incidência do princípio da insignificância independentemente da vinculação com o valor estipulado pela autoridade fazendária nacional. Assim, a falta de interesse de cobrança do débito tributário vincula o entendimento da própria caracterização da figura típica sob exame.
Em outras palavras, o que se entendeu como insignificante para a União em patamares de arrecadação poderá ser distinto para os estados e municípios, os quais deverão disciplinar o tema à luz de suas realidades [18].
A questão é interessante porque a caracterização ou não do crime fiscal com supressão ou redução de tributos estaduais ou municipais dependerá, necessariamente, do valor fixado pelas legislações dos estados e municípios de acordo com suas respectivas políticas tributárias. Por fim, apesar do avanço em termos de objetividade quanto à caracterização do crime, caberá aos tribunais examinar caso a caso, de acordo com a localidade do tributo envolvido, a possibilidade de incidência da causa excludente de tipicidade ora examinada.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. In: PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional: Comentários à Lei 7.492, de 16.6.86. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2016.
FELDENS, Luciano; HOFMEISTER NETO, Rubens. Crime de evasão de divisas: a retroatividade da resolução CMN 4.841. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-28/feldens-hofmeister-neto-crime-evasao-divisas. Acesso em 09 de junho de 2021.
MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016.
PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015.
PINTO, Rafael Fagundes. A insignificância no direito penal brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019.
REBOUÇAS, Sérgio. Direito penal: parte geral. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
SAIBRO, Henrique da Rosa. Crimes tributários: suspensão da exigibilidade e garantia do crédito. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
[1] O presente ensaio é fruto de debates realizados no Grupo de Pesquisa de Direito Penal Econômico da PUCPR/Londrina.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 714.
[3] MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 233-234.
[4] HC 84412, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004.
[5] Existe certa discussão a respeito do bem jurídico tutelado (correntes patrimonialista e funcionalista), mas sem repercussão quanto à incidência do princípio da insignificância. SAIBRO, Henrique da Rosa. Crimes tributários: suspensão da exigibilidade e garantia do crédito. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 82-86.
[6] Na redação originária o dispositivo autorizava o arquivamento de execuções fiscais de débitos inscritos como dívida ativa cujo valor consolidado fosse igual o inferior a dois mil e quinhentos reais.
[7] REsp 1112748 TO, relator ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/09/2009, DJe 13/10/2009 (Tema 157 — STJ). Na doutrina, criticando a aplicação do limite estabelecido na legislação referente às execuções fiscais para fins de aferição da insignificância da conduta na esfera penal, sob a justificativa de que a previsão legal diz respeito apenas às execuções fiscais já ajuizadas, que não tiveram bens localizados para garantir o juízo, sem afetar a cobrança administrativa fiscal da dívida e ainda, que a política fiscal em torno da legislação decorre de juízo de conveniência, pautado em custo e benefício, em virtude das inúmeras execuções fiscais frustradas por ausência de patrimônio ou condições financeiras dos devedores cf. PACELLI, Eugênio; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 96-97.
[8] REsp 1401424/PR, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/11/2014, DJe 02/12/2014.
[9] HC 127173, relator(a): MARCO AURÉLIO, relator(a) p/ acórdão: ROBERTO BARROSO, 1ª Turma, julgado em 21/03/2017; HC 136843, relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, 2ª Turma, julgado em 08/08/2017.
[10] REsp 1688878/SP, relator ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, 3ª SEÇÃO, julgado em 28/02/2018, DJe 04/04/2018 (Revisão do Tema 157 – STJ).
[11] ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. In: PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional: Comentários à Lei 7.492, de 16.6.86. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 192.
[12] FELDENS, Luciano; HOFMEISTER NETO, Rubens. Crime de evasão de divisas: a retroatividade da resolução CMN 4.841. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-28/feldens-hofmeister-neto-crime-evasao-divisas. Acesso em 09 de junho de 2021.
[13] Rafael Fagundes sintetiza os problemas atinentes à inexistência de uma harmonização jurisprudencial com relação a aplicação do princípio da insignificância, visto que considera os parâmetros estabelecidos inconsistentes, os quais abrem margem para interpretação subjetiva e contraditória, aduzindo que o precedente do Supremo Tribunal Federal não pode servir como critério balizador da aplicação da insignificância. Após formular análise a respeito de cada um dos requisitos, sustenta que é necessário que sejam estabelecidos critérios verdadeiramente objetivos para balizar sua aplicação, conferindo assim previsibilidade e segurança jurídica, bem como “permitindo que o direito penal cumpra sua função de contenção do poder punitivo irracional”. Em síntese, a seu ver, o principal problema consiste no fato de que “o reconhecimento da insignificância encontra-se muito mais atrelado às opiniões pessoais e ao arbítrio do julgador do que a qualquer critério técnico-jurídico”. Ver em: PINTO, Rafael Fagundes. A insignificância no direito penal brasileiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019, p. 129-191.
[14] REBOUÇAS, Sérgio. Direito penal: parte geral. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 161-162.
[15] HC 183959 AgR, relator(a): ROSA WEBER, 1ª Turma, julgado em 15/12/2020.
[16] RHC 130.853/SP, relator ministro NEFI CORDEIRO, 6ª TURMA, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020.
[17] Lei nº 18.292, de 04/11/2014 — estado do Paraná: artigo 2º — Não estão sujeitos a processo de execução fiscal, ressalvado o disposto no § 6º deste artigo, créditos tributários e não tributários, inscritos em Dívida Ativa do Estado, das autarquias e das fundações públicas, cujo valor consolidado, na data do encaminhamento, seja igual ou inferior aos seguintes limites: (redação do caput dada pela Lei nº 18.879 de 27/09/2016). I – para créditos tributários relativos ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, o valor de R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais); (Redação do inciso dada pela Lei Nº 18879 DE 27/09/2016). II – para créditos tributários relativos a Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD, o valor de R$10.000,00 (dez mil reais); III – para créditos tributários relativos a Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); IV – para créditos tributários relativos a taxas, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); V – para créditos relativos a multas não tributárias, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais); VI – para os demais créditos, o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
[18] Vide, por exemplo, estado de Santa Catarina: AgInt no HC 331.387/SC, relator ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 14/02/2017; estado do Pará: AgRg no RHC 70.842/PA, relator ministro JORGE MUSSI, 5ª TURMA, julgado em 21/09/2017.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-nov-08/opiniao-principio-insignificancia-crimes-tributarios