A situação dos contribuintes brasileiros, no geral, é bastante complexa. A alta carga tributária afeta diretamente os cidadãos, que enfrentam um dos momentos mais conturbados dos últimos anos em razão, dentre outras, dos elevados índices da inflação.
Em contrapartida — sem se olvidar ou fazer parecer menor a questão atinente à carga tributária brasileira —, analisando o cenário fiscal do ponto de vista do Poder Judiciário, os últimos anos representaram um período de mudanças significativas para as empresas, que obtiveram resultado favorável em uma das discussões jurídicas mais comentadas entre os empresários, contadores e advogados tributaristas: a exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições ao PIS e à Cofins (Tema 69 [1] do Supremo Tribunal Federal) [2].
A famosa “tese do século” expandiu o leque de visão de todos aqueles que estão envolvidos, diretamente ou não, em quaisquer operações tributáveis.
Assim, da referida tese, diante da fundamentação análoga, surgiram outras que vêm ganhando aceitação no Poder Judiciário e, com isso, muitas Empresas passaram a pleitear, pela vida mandamental, o reconhecimento do direito a não serem compelidas a recolher valores indevidamente inseridos na base de cálculo das contribuições ao PIS e à Cofins.
Nesse contexto, vale mencionar que dentre às teses estão a possibilidade de exclusão do ISS (Imposto Sobre Serviços) da base de cálculo do PIS/Cofins [3] e, também, a exclusão do PIS/Cofins da sua própria base de cálculo [4].
Apenas a título de demonstração do acolhimento das teses, mister se faz mencionar um trecho da recente decisão (julho de 2022), proferida pelo ilustre juiz federal Rodiner Roncada, nos autos do Processo nº 5001864-92.2022.4.03.6144, em trâmite perante a 1ª Vara Federal de Osasco:
“é pacífica a jurisprudência desta Corte Regional no sentido de que o quanto decidido como Tema 69 se aplica ao ISS, porque a lide é rigorosamente a mesma: gira em torno da possibilidade ou não de a base de cálculo de tributo representada sobre a receita e o faturamento ser composta também por numerário que não integrará o patrimônio do contribuinte; ‘in caso’, o ISSQN será repassado ao município. (…)”.
A mesma linha de raciocínio foi utilizada pela ilustre juíza federal Tatiana Pattaro Pereira, quando sentenciou o Mandado de Segurança nº 5003772-59.2021.4.03.6100, homenageando o voto da ministra Carmén Lúcia no julgamento do Tema 69 do Supremo Tribunal Federal:
“Ademais, o entendimento adotado pelo E. Supremo Tribunal Federal que definiu que o ICMS, por não compor o faturamento ou a receita bruta das empresas, deve ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins, também deve ser aplicado em relação à inclusão da contribuição ao PIS e a da Cofins em suas próprias bases de cálculo, já que a fundamentação adotada se aplica inteiramente.”
Destes julgados, restou cristalino o entendimento pró-contribuinte, principalmente no que tange à majoração indevida das bases de cálculo dos tributos, em razão da incidência de outros, que não constituem faturamento ou receita das empresas.
Ora, não é necessário ser um exímio contador para identificar a expressão astronômica do montante de valores envolvidos com os referidos julgamentos. São incontáveis empresas que obtiveram o seu direito a, mais do que não serem compelidas ao pagamento de tributos com as suas bases de cálculo indevidamente majoradas, obtiveram o reconhecimento do direito à compensação dos valores indevidamente pagos.
Não é à toa que a modulação dos efeitos da decisão que julgou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins veio inexplicavelmente mais rápido do que o julgamento per si.
A modulação dos efeitos nada mais é do que “a data de corte”, o “limite” para que os contribuintes possam se aproveitar da decisão favorável, sem que venham a ser compensados valores retroativos, a perder de vista.
O mesmo ocorreu, por exemplo, no julgamento que afastou a incidência de Imposto de Renda (IR) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquidos (CSLL) [5] — outro julgamento que afetou positivamente os contribuintes.
A trava para compensação (modulação dos efeitos — nestes casos) serve justamente para equalizar os benefícios e prejuízos entre os contribuintes e à Fazenda Pública.
Isso porque, permitir que em razão de entendimento firmado pelo Poder Judiciário os contribuintes possam compensar, sem limitação, os valores indevidamente recolhidos, seria condenar os cofres públicos à reparação impossível e, consequentemente, condenar toda a estrutura da Fazenda, que deixaria de receber percentual significativo de suas receitas.
Até então, não encontramos nenhum problema, afinal, a Justiça se baseia, principalmente, em oferecer resposta justa e eficaz às partes. De nada adiantaria um direito reconhecido, sem a possibilidade de aproveitá-lo e, também, não adiantaria que esse direito não fosse limitado, sob pena de limitar significativamente a atuação do Estado.
Ocorre que, as teses e julgamentos até então apresentados são meramente uma parcela de toda a disputa fiscal existente no direito brasileiro e, por mais que a teoria caminhe harmoniosamente, sua verdadeira face surge, lenta e desapercebidamente, bem diante dos nossos olhos.
Recentemente (em julho de 2022) o Superior Tribunal de Justiça suspendeu decisão liminar que havia concedido à uma empresa o direito de compensar valores contabilizados em, aproximadamente, R$ 500 milhões.
Além das fundamentações legais — como por exemplo a impossibilidade permitir a compensação de valores por meio de decisão liminar —, a decisão chamou atenção por fazer menção à possibilidade real de compensação, com impacto substancial na arrecadação estadual.
Vale mencionar que, no caso, o ministro Jorge Mussi destacou que “tal frustração de receita, uma vez concretizada pela utilização do crédito em regime de compensação, é apta a provocar lesão a outro bem jurídico protegido pelas normas de regência: a ordem pública. É que, consistindo o ICMS no principal tributo para os Estados, a redução da arrecadação impacta imediatamente na prestação dos serviços públicos a toda a coletividade” [6].
No caso analisado pelo STJ, os valores a serem compensados por uma única Empresa representavam 50% (cinquenta por cento) do total dos valores arrecadados do estado de Mato Grosso do Sul.
A dúvida que surge a partir dessa decisão é complexa, porém uma só: diante de um cenário em que uma única empresa, ao buscar a compensação de créditos tributários, atinge diretamente a arrecadação estatal, podendo ferir a prestação de serviços públicos (como mencionado na decisão do ilustre ministro Jorge Mussi), como será o comportamento da Fazenda Pública e do Poder Judiciário, por exemplo, quando os contribuintes, vencedores nas inúmeras teses tributárias e munidos de suas certidões de trânsito em julgado, passarem a requerer a compensação imediata dos seus créditos?
Estamos caminhando, inevitavelmente, para uma bolha de créditos fiscais.
De um lado, teremos os contribuintes, munidos de razão e do seu direito reconhecido, a pleitear pela compensação de valores indevidamente recolhidos.
De outro lado, a Fazenda Pública, detentora do orçamento que gira a máquina estatal, que dificilmente terá como suprir a demanda compensatória, sem prejudicar sobremaneira suas atividades.
Se ao acaso forem permitidas as compensações, tão somente com as travas produzidas pela modulação dos efeitos das decisões pró-contribuintes, muito provavelmente o Estado não suportará os montantes compensados e deixará de auferir receita suficiente aos cofres públicos. Nesse cenário, a prestação dos serviços públicos será ainda mais prejudicada e, consequentemente, toda a população dependente direta da atuação estatal, será gravemente lesada.
Já no caso de, imaginando esse cenário, serem impostas limitações pelo Poder Judiciário, impedindo os contribuintes de utilizarem os seus créditos fiscais, estaríamos diante de sanção manifestamente ilegal, por restringir as empresas de se utilizarem de um direito reconhecido judicialmente.
Nessa última hipótese, ainda, o contribuinte enfrentaria uma dupla penalidade, porque a compensação é moeda que só pode ser utilizada nas operações com o próprio Fisco. Assim, diante de eventual trava/limitação, a empresa além de não poder utilizar os valores compensáveis para arcar com as cobranças tributárias correntes, tal medida prejudicaria os contribuintes menores, que usualmente fazem compensações para equilibrar a saúde financeira de suas empresas.
O embate engloba uma série de questões morais e políticas, trazendo risco à segurança jurídica e colocando em xeque a efetividade das decisões proferidas pelo Poder Judiciário.
Infelizmente não é possível prever quais serão os próximos impactos oriundos dos julgamentos das grandes teses tributárias favoráveis aos contribuintes, todavia está evidente a atuação, por diversas frentes, em busca da limitação do uso imediato dessas decisões.
Provavelmente a justiça brasileira percorrerá um longo trajeto até que enfrentemos situações extraordinárias como as que foram hipoteticamente apresentadas neste artigo (impacto direto nos serviços públicos e restrição ao direito de compensação), mas o problema já está bem claro.
O Judiciário brasileiro, acertadamente, tem tomado decisões que, na seara tributária e do ponto de vista legal, são quase irretocáveis — a carga tributária há muito estava indevidamente majorada, em razão da ausência de análise técnica-jurídica dos temas enfrentados.
Ocorre que a Fazenda Pública não estava — e ainda não está — preparada para receber e atender os incontáveis pedidos de reparação (compensação) dos contribuintes, dos valores já declarados inexigíveis pelo Poder Judiciário e que foram indevidamente recolhidos.
A tendência é que, com o tempo, o aumento dos pedidos de compensação leve à deficiência dos cofres públicos e, com isso, sejam impostas travas aos contribuintes — limitação de valores compensáveis por períodos ou, até mesmo, fila para compensação valores, por exemplo —, impedindo a sua efetiva utilização.
Por isso, talvez esse seja o momento mais apropriado para que os contribuintes que já tiveram o direito à compensação de valores reconhecido, ingressarem com os competentes requerimentos para se beneficiar das decisões.
Independente das mudanças que venham a ocorrer, o que não se espera é a banalização das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, que mesmo diante do reconhecimento do direito dos contribuintes, já apresentam patentes sinais de ineficácia e ineficiência.
A verdadeira conclusão de todas as questões postas é que, mais uma vez, como já muitas vezes ocorreu na história deste país, o fardo do imprevisível será suportado pelas costas do contribuinte.
A balança do Poder Judiciário, no esforço de promover a paridade entre os cofres públicos e o Direito propriamente dito, sucumbirá à inevitável e necessária manutenção da engrenagem estatal e, daí, se iniciará um novo ciclo de debates judiciais.
Por mais que o sol seja coberto por um pano, o calor ainda atinge quem dele está se protegendo e, uma hora, torna-se insuportável a temperatura. É assim também para com os contribuintes. Por mais que sejam distribuídas incontáveis medidas judiciais para protegê-los das cobranças a maior da Fazenda Pública, os seus outros efeitos continuam atingindo lentamente quem delas se aproveitam, até que se tornem insustentáveis às partes — a bolha se estoura.
[1] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2585258&numeroProcesso=574706&classeProcesso=RE&numeroTema=69
[2] RE 574706, relator (a): ministra CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL — MÉRITO DJe-223 DIVULG 29- 09-2017 PUBLIC 02-10-2017
[3] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2637509&numeroProcesso=592616&classeProcesso=RE&numeroTema=118
[4] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5769504
[5] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=486488&ori=1
[6] SUSPENSÃO DE SEGURANÇA Nº 3408 — MS (2022/0224603-2) — 21/07/2022
Autor: Gabriel Bacchin é advogado tributarista e pós-graduado em Direito Tributário.