Proporcionar soluções, com ajuda de tecnologia, melhorar a qualidade de vida da população, levando em conta fatores sociais, econômicos, de mobilidade, inovação, educação, saúde, governança e transparência do governo é o desafio do conceito de cidade inteligente. E isso está intimamente ligado a uma economia mais sustentável.
Horas perdidas no trânsito, transporte público insuficiente e lotado, poluição, serviços que não funcionam e pouca atenção ao meio ambiente. É um cenário que traduz um estilo de vida que parece conspirar contra nós mesmos. O conceito de cidade inteligente (ou, no inglês,smart city) veio para mudar esse quadro, ao proporcionar soluções, com ajuda de tecnologia, para melhorar a qualidade de vida da população, considerando fatores sociais, econômicos, de mobilidade, inovação, educação, saúde, governança e transparência do governo. E isso está intimamente ligado a uma economia mais sustentável.
“O BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] considera cidades inteligentes aquelas que colocam a pessoa no centro do desenvolvimento, incorporando tecnologia da informação e comunicação na gestão, para formular políticas públicas e ter governo e serviços eficientes”, diz Luís Felipe Bismarchi, doutor em ciência ambiental e pós-doutor em administração pela Universidade de São Paulo (USP) e hoje professor da Faculdade Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi). “Sustentabilidade em cidades inteligentes, é o uso eficiente e responsável dos recursos da natureza”, acrescenta, reforçando o aspecto socioambiental e de governança (ESG) do tema.
Uma smart city busca suprir lacunas para melhorar a qualidade de vida do cidadão, de acordo com Willian Rigon, diretor da Urban Systems, que desde 2015 publica o Ranking Conected Smart Cities. Nesta edição de 2022, Curitiba (PR) está no topo da lista, seguida por Florianópolis (SC) e as paulistas São Paulo, São Caetano do Sul e Campinas. Para o estudo, a empresa se debruçou sobre os dados de 676 municípios com mais de 50 mil habitantes, colhidos com base em 11 eixos temáticos e 75 indicadores de avaliação. No final, é feita uma ponderação a partir de três pesos diferentes atribuídos aos dados, chegando a uma nota final de, no máximo, 70 pontos. Mesmo na dianteira, Curitiba só alcançou 38,6 pontos.
Entre os 11 eixos trabalhados pela Urban Systems estão aspectos de uma cidade funcional,tais como melhoria da mobilidade, bom planejamento urbano, oferta de serviços de saúde,educação e segurança, disponibilidade de energia renovável, cuidado ao meio ambiente (incluindo qualidade do ar, conforto térmico e ruído) e infraestrutura básica. Inovação e tecnologia, empreendedorismo, economia e governança são outras verticais avaliadas. Em muitos aspectos, são itens semelhantes aos critérios de outro ranking municipal, o Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades, que mede o progresso dos locais no cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.
Curitiba, que já era referência em mobilidade, planejamento urbano e meio ambiente, criou, em 2017, o programa Vale do Pinhão, segundo Cris Alessi, presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento e Inovação, a fim de promover ações para se tornar uma cidade inteligente. Por intermédio do programa, a prefeitura atraiu a academia e o setor privado – aceleradoras, incubadoras e startups – para fomentar a inovação com base em tecnologias.
Em paralelo, começou a trabalhar seu “arcabouço tecnológico”, com a consolidação de uma base de dados para poder criar produtos e serviços digitais. Um dos resultados foi a criação da plataforma Curitiba App, que dá acesso a mais de 600 serviços digitalizados com login único. Por meio dele, é possível contactar o Curitiba 156, que recebe solicitações de serviços (de asfalto e iluminação, por exemplo) e fornece informações como horário e itinerário de ônibus, bem como o Saúde Já, que possibilita a marcação de consultas. “Tudo no mesmo lugar. O cidadão pode pagar IPTU, acessar o crédito da nota (fiscal), ou saber qual é o próximo curso de empreendedorismo”, diz Alessi.
Curitiba está prestes a assinar um contrato de parceria público-privada (PPP) com a geradora de energia Engie, para modernizar a iluminação pública. Além da colocação de lâmpadas de LED em toda a cidade, a empresa terá de instalar em 30% das luminárias da cidade dispositivos como sensores para medir e gerar dados sobre qualidade do ar, trânsito, e o que mais a prefeitura considerar necessário para captar informações. Segundo Marcus Cunha, diretor de Soluções para Cidades da Engie, a tecnologia LED está sendo procurada porque pode reduzir em 50% a 60% o consumo de eletricidade. As luminárias também receberão, remotamente, comandos para regular o nível de luminosidade e detectar defeitos.
A cidade ainda deve expandir mais sua rede pública de wi-fi em praças, escolas, hospitais e pontos de ônibus. “Não adianta colocar serviços digitais se não houver conectividade”, ressalta Alessi. Em paralelo, está em início de construção o Bairro Novo do Cachimba que, segundo a prefeitura, será o primeiro bairro inteligente do país, com adoção de boas práticas ambientais, moradias para mais de mil famílias e estímulo à economia circular com capacitação dos moradores.
Incentivo aos negócios locais é um tema importante para municípios que buscam ser mais inteligentes. Bismarchi, da Fipecafi, lembra que o marco legal das startups é uma ferramenta que induz à inovação, ao permitir às cidades fazer chamamentos com base apenas nos problemas identificados. “Até então, a contratação pública já deveria descrever em detalhes o que teria de ser feito. Isso induz a prefeitura a ser inovadora e permite que smart cities atuem na transição para a economia de baixo carbono.”
Sérgio Gusmão Suchodolski, que hoje faz parte do conselho da Fundação Amazônia Sustentável e já presidiu o Desenvolve SP e o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, lembra que instituições de fomento oferecem linhas de crédito para prefeituras destinadas à criação do ambiente de infraestrutura municipal sustentável e para o fomento direto de negócios para micro, pequenas e médias empresas.
Segundo ele, há procura por projetos de energia renovável e de saneamento. “Também temos visto, em relação a cidades inteligentes, projetos para o transporte urbano, com alguns municípios firmando compromisso com a transição da frota municipal para o transporte elétrico”, diz. E há também casos como o da BeGreen Fazendas Urbanas, que obteve financiamento do Desenvolve SP.
A empresa tem hortas em áreas de shoppings em São Paulo, Campinas, Belo Horizonte, Salvador e Goiânia e no topo de dois prédios: um industrial, da Mercedes Benz, em São Bernardo do Campo (SP), e na sede do iFood, em Osasco (SP). No primeiro, parte da produção é destinada ao consumo no refeitório da empresa e parte é doada. Na Mercedes, além do uso no refeitório, o trabalhador também pode comprar e levar o produto para casa.
A ideia de criar a BeGreen, em 2017, surgiu, recorda o CEO, Giuliano Bittencourt, depois de descobrir que quase 70% dos alimentos perecíveis produzidos acabam indo para o lixo. “Isso acontece porque a cadeia é cheia de elos e distante do consumidor”, diz. Segundo ele, o grande mote da BeGreen é levar a produção para perto de onde as pessoas consomem, o que reduz a emissão de CO2 e o desperdício, aumenta a produtividade, além de entregar um produto fresco, sem agrotóxico, saudável e sustentável.
O método de produção é hidropônico de cultivo em estufas. Segundo Bittencourt, a BeGreen utiliza 90% menos água que o modelo tradicional, a perda é apenas 2% do cultivo e produz 28 vezes mais que um produtor convencional. As hortas são fechadas, têm temperatura, umidade, condutividade elétrica e pH controlados via sensores instalados na caixa d’água. A produção de todas as hortas soma 22 toneladas por mês, de folhosas como alface, rúcula e agrião, além de legumes e frutos como tomate, berinjela, abobrinha, pimentão, e pepino. As hortas em shoppings, além de fornecer para os restaurantes locais, são abertas à população,que pode colher e comprar os alimentos.
“Áreas verdes e integração entre as regiões são os maiores desafios das cidades”, comenta Patricia Ellen, ex-secretária de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de SP e atual sócia da consultoria em soluções para problemas complexos Systemiq. Ela cita relatório do Painel Intergovernamental Sobre Mudança Climática (IPCC), que aponta entre 3,3 bilhões e 3,6 bilhões de pessoas vivendo em contextos de alta vulnerabilidade à mudança climática, incluindo exposição a calor extremo e escassez severa de água.
“No Brasil, há o agravante da fome: são 33 milhões de pessoas sem o que comer e 15,4 milhões enfrentando insegurança alimentar grave”, diz, se referindo a estudos divulgados este ano pela Rede Penssan, formada por entidades como Ação da Cidadania, Actionaid, Ford Fundation, Vox Populi e Oxfam, e pela Organização da ONU para Alimentação e Agricultura
(FAO).
O problema, pontua a executiva, é que as cidades não são apenas vítimas das mudanças climáticas e das desigualdades. São, na verdade, causadoras e aceleradoras de muitos dos problemas ligados a esses temas. Os centros urbanos são, por exemplo, responsáveis por cerca de 70% das emissões de gases de efeito estufa globais. Deste número, 40% vêm da construção civil, de acordo com estimativas do Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma).
“Parte da solução está na criação de mais áreas verdes. A boa notícia é que o Brasil tem 46 cidades dentro de ‘hotspots’ de biodiversidade, incluindo São Paulo e Rio. Ou seja, é uma grande oportunidade de preservação e maior interação com a natureza”, diz Ellen, que é também cofundadora do AYA Earth Partners, que une pessoas, empresas e organizações com foco em ações e soluções que aceleram a transição net zero. Um hotspot é uma área de alta concentração de biodiversidade com real ameaça de desmatamento e extinção de plantas e animais, como Mata Atlântica e Cerrado no Brasil. “O país tem a chance de criar novo modelo de prosperidade, de economia, e reduzir desigualdade e ter questões climáticas como prioridade, de ser a primeira nação net zero em 2030 e, mais, de ter impacto positivo para o planeta”, finaliza Ellen.
Fonte: https://valor.globo.com/brasil/esg/noticia/2022/11/23/saiba-por-que-o-futuro-das-cidades-inteligentes-e-verde.ghtml