Home ANAFISCO Reforma tributária: as grandes linhas que se firmam entre os especialistas

Reforma tributária: as grandes linhas que se firmam entre os especialistas

por ANAFISCO

O mês de maio foi marcado por importantes eventos direcionados à tão discutida reforma tributária. Especialistas [1] voltados à matéria tributária acorreram a esses encontros [2], quando, então, se pôde constatar que a cada dia mais cresce o interesse no sentido de que se faça algo para reduzir a complexidade do sistema tributário, além de reduzir seu alto custo especialmente em termos de obrigações acessórias e de contencioso tributário, sob pena de a economia nacional resultar seriamente afetada. Percebe-se, nessas pessoas interessadas em modificar/melhorar o sistema tributário, o sentimento de que as reformas ou melhorias buscadas devem, sempre, ser feitas com foco nos princípios constitucionais que regem a matéria, buscando-se, porém, pela racionalidade, ao mesmo tempo em que se incorporam as melhores práticas, tanto pelo contribuinte quanto pelo Poder Público.

Na discussão sobre a reforma do sistema tributário voltada, principalmente, à revisão dos tributos hoje existentes, sua redução e simplificação, todos estão atentos às proposições apresentadas pelo governo federal e consubstanciadas no projeto de emendas constitucionais que versam sobre alteração que diz respeito aos impostos e contribuições sociais que se voltam ao consumo, ou seja, Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto sobre Serviços (ISS), Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), dentre outras [3]. Completa a dita reforma o Projeto de Lei nº 2.337/2019, de que tanto já se falou, e que objetiva alterar o Imposto sobre a Renda (IR) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Ambos os projetos já passaram pela Câmara dos Deputados e agora estão sob exame do Senado.

Em resumo, as emendas constitucionais que objetivam reduzir o número de tributos sobre o consumo, substituindo os atuais ICMS e o ISS, pretendem que o novo imposto, Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), incida sobre operações com bens e serviços, inclusive imateriais, tendo a natureza dual, a exemplo do que ocorre com o IVA, Imposto sobre o Valor Adicionado de alguns países, bifurcando-se entre IBS estadual e municipal. De acordo com os especialistas que debatem o tema, é de se destacar que até agora não se sabe, exatamente, quais operações entrariam na base de cálculo desse imposto, visto que operação não é um conceito unívoco, mas aberto, logo seu desenho teria que ser dado por uma lei complementar a qual sempre pode ser questionada pelos insatisfeitos, como já ocorreu no cenário brasileiro.

De outro lado, utilizar operações com bens e serviços, tangíveis ou não, é ingressar no campo minado do conceito de serviço, já sob discussão no Supremo Tribunal Federal, que em algumas situações abandonou o conceito de serviço do Direito Privado e construiu um conceito próprio, nova figura, como ocorreu com o serviço financeiro, no caso das operações de arrendamento mercantil. Ou seja, já se começa o caminho da reforma optando pela litigiosidade.

Outro aspecto ressaltado pelos especialistas, nas inovações voltadas à tributação do consumo, diz respeito à substituição do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por um imposto seletivo. É interessante reiterar que o IPI, por determinação constitucional, artigo 153, parágrafo 3º, I, é seletivo, em função da essencialidade do produto, ou seja, a proposta objetiva, na realidade, substituir um tributo que já é seletivo por outro que será, também, seletivo. Em nome da racionalidade, dizemos nós, talvez o mais produtivo seja reformar o IPI mantendo-o, visto que sua incidência é ampla.

Como ocorre desde a Emenda Constitucional nº 18/65, o ICMS e o ISS são os grandes gargalos na discussão que envolve o sistema tributário. Isso porque o ICMS, por ser o tributo de maior arrecadação pelos estados e pelo Distrito Federal, sempre foi objeto de muita polêmica quer por ter sua arrecadação compartilhada pelos estados com os municípios, quer por sua tributação ocorrer na origem, o que, supostamente, beneficiaria os estados mais ricos e não levaria em conta os estados de destino.

Os números do ICMS são, acima de tudo, grandiosos, como o demonstra o Boletim de Arrecadação de Tributos Estaduais, do Conselho de Política Fazendária (Confaz), do Ministério da Economia para o ano de 2021, quando foram arrecadados R$ 758,6 bilhões a título de tributos estaduais, sendo que 86% desse montante se fez a título de ICMS [4]. O IR desse mesmo período foi da ordem de R$ 933,3 bilhões [5], o que em simples comparação indica a importância dos números do ICMS qualquer que seja a finalidade pretendida.

De forma geral observa-se, entre os especialistas na matéria, que os tributos federais podem ser reduzidos, reunindo-se as contribuições sociais em uma única figura, como é o caso das contribuições devidas a título de PIS e de COFINS, devendo, porém, alertamos nós, serem revistas as hipóteses de não cumulatividade, visto que a cumulatividade é ônus insuportável para os contribuintes, tudo isso podendo ser feito por lei ordinária, em projeto de reforma que denominamos de pequenos ganhos, sem interferir na ordem constitucional.

Destaque-se que a ideia de reduzir ou consolidar tributos não é nova no cenário brasileiro. No ano de 1995, a título de exemplo, o deputado Luis Roberto Ponte apresentou projeto que se tonaria conhecido como “Proposta Ponte”, que contemplava apenas seis tributos: Imposto Seletivo, Imposto sobre o Comércio Exterior, Imposto sobre a propriedade imobiliária (abarcando ITR e IPTU), ITF (Imposto sobre Transações Financeiras), Imposto sobre o consumo (espécie de ICMS nacional, eliminando-se o estadual) e Imposto sobre a Renda. O Imposto Seletivo seria cobrado uma só vez sobre combustíveis, energia elétrica, telecomunicações, automóveis, bebidas e tabaco e sua arrecadação estaria a cargo de estados e municípios. A ideia estava suportada no fato de que, exceto bebidas e tabaco, os demais bens gravados afetariam todas as cadeias econômicas, afastando-se outras incidências. Com isso, a reforma atingiria a economia como um todo. Por fim, o ICMS seria convertido em tributo nacional. O autor do Projeto atravessou o país, paladino que era de suas ideias, com o grande mérito de tê-las discutido em todos os ambientes, empresariais e acadêmicos.

Ao mesmo tempo, entretanto, e em contrapartida ao “Projeto Ponte”, o governo federal entendia que o sistema tributário deveria ser simplificado para facilitar a arrecadação, tentando, com esse objetivo, criar um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que fundiria o IPI e o ICMS. Novamente o foco da reforma era o ICMS, apenas, nada diversos dos dias de hoje.

Os fatos aqui comentados demonstram que passados quase 30 anos ainda estamos na mesma situação, pois tentamos, em nome de supostas melhores práticas fiscais (p. ex.: tributo sobre o consumo deve ter caráter nacional e tributo sobre o consumo deve ser cobrado no destino) “retirar” o ICMS da competência estadual. O ICMS estadual tem uma história longa e ela não pode ser olvidada estando, na realidade, sedimentado na memória tributária das lideranças políticas como tributo estadual. Confirma-se esse fato examinando-se o tributo que antecedeu o ICM/ICMS, o Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), criado em 1922 sob o nome de imposto sobre vendas mercantis, mais tarde denominado imposto de vendas e consignações, o qual foi transferido para a órbita estadual pela Constituição Federal de 1934, conforme disposto em seu artigo 8°, I, e. Não se deve olvidar a história de cada tributo, pois ela é sempre inspiradora e orientadora nas análises a serem feitas. Ou seja, o ICMS, como tributo estadual tem, apenas, 90 anos.

Somando-se a excelente performance da arrecadação do ICMS, como demonstrado, à tradição brasileira de dar competência aos Estados para cobrá-lo (há quase 90 anos, como se observa) aparenta ser muito difícil argumentar a favor de suposta transferência da competência estadual para a federal, pelo menos junto aos governadores e aos senadores. De nossa parte, tecnicamente, não temos nenhuma restrição a esse movimento, mas, ao que parece, seu momento já teria passado, tendo ocorrido por ocasião da edição da Constituição Federal de 1988, momento de ruptura e renovação.

Também se diga o mesmo do imposto de indústrias e profissões, consagrado como tributo de competência dual, municipal e estadual, pela mesma Constituição de 1934, artigo 8°, parágrafo 2°, precursor do Imposto sobre Serviços, introduzido pela Emenda Constitucional nº 18/65, quando assumiu o caráter de exclusivamente municipal (artigo 15).

Por esses e outros motivos, observa-se muita cautela dos especialistas no que tange a qualquer reforma de natureza constitucional dos impostos sobre o consumo. Indaga-se, porém: há maturidade suficiente para fazer tal reforma constitucional? E, melhor, os brasileiros querem mesmo proceder à reforma do ICMS e do ISS, para transformá-los em outro tributo?

No que tange ao PL 2.337, que objetiva reformar o IR, especialmente no que se refere às pessoas jurídicas, sua rejeição se mantém, isso porque, no entender dos especialistas que debatem, ele importa em retrocesso, buscando afetar boas regras, consolidadas desde há muito (1995). Tais disposições implicam em uma tributação combinada entre pessoa jurídica e pessoa física, assim equilibrando o quantum que deve ser arrecadado e permitindo desonerar a distribuição de lucros. Esse movimento acarreta imensa insegurança jurídica, visto que não há evidências de que a alíquota do IR corporativo será reduzida em montante compatível e assim mantida para compensar a tributação da distribuição de dividendos. O segundo principal propósito do PL 2.337, focado na vedação à dedutibilidade dos juros calculados sobre o capital próprio (JCP), também é inoportuno e não se justifica qualquer que seja o ângulo pelo qual seja visto.

Indagados os especialistas sobre outros aspectos suscetíveis de reforma voltados à melhoria do sistema tributário, há unanimidade sobre o excesso de obrigações acessórias, excessiva onerosidade das multas e a sua banalização. Também a excessiva demora na solução de conflitos é ponto visto por todos como preocupante, seja nos tribunais administrativos seja junto ao Poder Judiciário.

A boa nova, entretanto, veio na declaração da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), no sentido de que está sendo consolidada a legislação tributária infralegal, especialmente a aduaneira. Com isso, cria-se um facilitador para o contribuinte e reduz-se o risco de autuação. Além disso, a RFB aposta no Confia, programa brasileiro de conformidade cooperativa fiscal, que pretende, dentre outras ações, mudar o paradigma da relação entre a RFB e os contribuintes. Com base em critérios científicos de análise de risco e do comportamento do contribuinte, a RFB pretende criar caminhos para melhor dialogar com o contribuinte antes de, espera-se, “autuá-lo e depois aguardar que se defenda”.

A RFB também dá notícias de que com o chamado compliance cooperativo buscará criar uma relação transparente e colaborativa com os contribuintes, assim rompendo fórmulas de relacionamento tradicional, em que o contribuinte entrega apenas as informações legalmente exigidas e aguarda os questionamentos. As recomendações do compliance cooperativo, conforme estudos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), exigem muito mais do que se limitarem as partes apenas ao exigido por lei. O compliance cooperativo aparece pela primeira vez no “Study into the Role of Tax Intermediaries”, de 2008, mais recentemente aperfeiçoado.

De forma resumida o compliance cooperativo exige um ambiente de harmonia entre Fisco e contribuinte, o cumprimento da obrigação tributária principal de forma correta quanto ao cálculo, bem como ao momento em que se deve pagar. Essa conduta vem sendo disseminada como conduta transparente e amigável, visto que ela se afasta de procedimentos à margem da lei. A despeito do Brasil não integrar a OCDE, ele já vem adotando uma série de políticas por ela recomendadas em matéria tributária.

Tendo em vista esse fato, seria de todo conveniente que o Fisco brasileiro desse os primeiros passos no sentido de elaborar o que seriam as boas práticas, permitindo que se operacionalize a arrecadação de acordo com as escolhas e interpretação da lei, feitas pelo contribuinte, para somente após evidenciado que houve burla ou má fé, restando comprovada a responsabilidade do contribuinte, puni-lo. Isso permitiria uma reforma tributária, do ponto de vista do compliance, calcada na segurança jurídica, reduzindo, em linha, o imenso contencioso tributário que hoje existe.

O que temos hoje, em matéria de obrigações acessórias, já o dissemos, mas é bom que se repita, é verdadeira tributação oculta representada pelo alto custo decorrente do atendimento a exigências de todos os tipos, em termos de complexidades burocráticas, exigindo, inclusive, a contratação de pessoas especializadas e equipamentos caros. Além disso, o recurso aos tribunais para defender e preservar direitos, também envolve desembolsos que sempre são representativos qualquer que seja a entidade.

Uma reforma verdadeira deve considerar todos esses aspectos, pois, caso contrário, se mantidas as mesmas condições atuais, remanescerão as disputas e o imenso contencioso administrativo e judicial envolvendo questões tributárias.

Nesse cenário trágico, nada terá valido a pena, e nada porá fim ao ambiente de dúvida, discussão, desconfiança e ruptura atuais.

[1] Sob essa rubrica se incluem professores, profissionais da área, representantes do governo, integrantes de associações e outros que fazem da matéria tributária seu ofício.

[2] Faço especial referência ao VI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), ocorrido de 18 a 20/5/2022, na cidade do Rio de Janeiro, voltado à Segurança jurídica: estabilidade, integridade e coerência e ao evento Eficiência da Administração Tributária, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), no dia 27/5/2022, na cidade de São Paulo, em conjunto com a Secretaria da Receita Federal do Brasil.

[3] Tramitam essas PECs, hoje, no Senado sob os números 45/2019 e 110/2019. Há um esforço por parte do relator da PEC 45, senador Roberto Rocha, de consolidar as duas iniciativas.

[4] https://www.confaz.fazenda.gov.br/@@busca?SearchableText=arrecada%C3%A7%C3%A3o

[5] https://www.impostometro.com.br

Autor:  é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP e professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS. .

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