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O que é “legislação urbanística”?

por ANAFISCO

A legislação urbanística é aquela que rege o aproveitamento urbanístico do solo urbano, ou seja, as atividades relacionadas ao uso, ocupação e parcelamento, tal como explicitado no art. 30/VIII da CF. Mas porque razão se fala, no Direito Urbanístico, em “legislação urbanística”, o que se entende por esta expressão às vezes substituída por “regras de urbanismo”?1 Uma investigação como esta nos leva à questão das fontes do Direito Urbanístico – e ela se apresenta de modo muito diferente, por exemplo, do que ocorre em outros ramos do Direito porque a cidade é multifária, complexa, caleidoscópica exigindo atuação diferenciada do Estado. Assim, patrimonial, a legislação precisa se adequar a cada porção específica do espaço urbano e, de outra parte, o poder público há de ter poderes para apreciar cada iniciativa de aproveitamento com a singularidade que lhe é própria.

Não é por outra razão que, na França, o código de urbanismo encontra-se dividido em parte normativa e parte regulamentar, que muda muito rapidamente2. Hubert Charles diz que o Direito Urbanístico tem fontes variadas sendo essencialmente regulamentar, quer dizer, não é disciplinado pelo Poder Legislativo mas pela administração pública (Droit de l’urbanisme, p. 72) – o que o torna flexível e dinâmico em relação aos fatos. Como explica Grégory Kalflèche, “os artigos legislativos e regulamentares [do código de urbanismo] são separados e cada número é precedido de um L (para os artigos legislativos), de um R (para os decretos do conselho de Estado) ou de um A (para as decisões ministeriais)” (Droit de l’urbanisme, p. 25). Portanto, na França, onde o código de urbanismo foi instituído em 1954, já se reconhece a multiplicidade das fontes formais que decorre da multiplicidade e heterogeneidade das situações normadas, podendo escapar das características de generalidade e abstração da lei formal.

Em suas Instituições de Direito Penal, Miguel Reale Junior observa que, no Direito Penal passa a ser dramático “conciliar a visualização dinâmica e concreta do Direito com a necessidade de atendimento à certeza e à segurança jurídica. Isto porque o Direito Penal está arrimado no princípio básico da legalidade” (p. 76). Tal “dramaticidade” não ocorre com o Direito Urbanístico porque suas fontes são várias a começar pela própria lei que pode ser federal, estadual ou municipal, sendo municipais as normas urbanísticas “mais características porque, no sistema brasileiro, é nos municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica” (José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, p. 77). No mesmo sentido, também na França – que não é um Estado federal – Jacqueline Morand-Deviller considera que os entes locais “detêm o essencial do poder em matéria de planejamento e ordenação urbana”, sendo, pois, sua tarefa “árdua” (La commune, p. 8).

Com efeito, a competência própria do município brasileiro para promover o adequado ordenamento do seu território e legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30), não afasta, na estrutura constitucional, a competência concorrente do art. 24/I, que permite à União e aos Estados editarem (originariamente ou suplementarmente) normas gerais de Direito Urbanístico. Tanto o estatuto da cidade, de 2001, quanto a conhecida lei de parcelamento do solo urbano, de 1979, são normas gerais que não afastam, antes requerem, a integração da lei local.

Ademais, os planos urbanísticos locais – chamados apenas de “planos diretores” ou, melhor, planos urbanísticos diretores – também são, no Brasil, leis municipais porém com elementos muito especiais (exigem cartografia tanto prospectiva quando retrospectiva, motivação das decisões e participação popular indispensável), sendo a base do microssistema urbanístico de cada município brasileiro para ordenação dos espaços habitáveis. Assim, a existência do plano urbanístico permite a coexistência de uma lei específica de parcelamento do solo urbano em nível local, por exemplo, e ambas integram o que se chama “legislação urbanística”. No mesmo sentido, a forma de cálculo do pagamento da outorga onerosa do direito de construir, ou melhor, outorga onerosa do direito de utilização do potencial construtivo adicional do lote, poderá ser fixada em decreto, desde que este se ajuste à lei que disciplina o instrumento previsto, de modo genérico, pelo estatuto (art. 28) mas disciplinado, em cada município, pelo plano3.

Da mesma forma, no Direito Urbanístico caberá, sem dúvida, a utilização da analogia e dos princípios gerais do Direito Urbanístico (bem ao contrário do Direito Penal no qual a interpretação analógica não é admitida) considerando, mais uma vez, as múltiplas faces da realidade urbana, que é, além disso, mutante. Princípios como os da função social da propriedade, da vedação da proximidade de usos incompatíveis ou do condicionamento do parcelamento ou da edificação com a infraestrutura disponível (todos presentes no estatuto da cidade, art. 2) podem ser utilizados para admitir ou não admitir determinado empreendimento imobiliário, dentro do campo do Direito Urbanístico. Se, como diz Le Corbusier, a rua-corredor (“rue en corridor”), que envenena as casas lindeiras, deve ser evitada com fachadas ativas ou outras soluções que a prefeitura pode propor, incentivar ou mesmo exigir dos proprietários (cf. Urbanismo, p.158).

Penso que, a propósito do tema, é bastante cabível fazer-se uma comparação propícia entre o Direito Urbanístico com o Direito Tributário, ambos dependendo das flutuações da conjuntura. Tanto a tributação quando a legislação urbanística ambas dependem de conjunturas específicas urbanas e econômicas. Ao tratar das normas gerais do Direito Tributário, o código tributário nacional, de 1966, começa dizendo no art. 96: “A expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Assim, por exemplo, o regulamento do imposto de renda ou do ICMS são normas fundamentais embora veiculadas por decreto uma vez que dependem das conjunturas espaço-temporais. O mesmo ocorre com o Direito Urbanístico: respondendo a pergunta inicial, a expressão “legislação urbanística” é genérica e abrange normas de diferentes origens (leis federais, estaduais, municipais), decretos, princípios que tratam da ordenação do solo urbano mediante o estabelecimento de regras para sua ocupação pelos agentes que produzem a cidade. Forma, assim, um microssistema normativo integrado por diferentes fontes, em coesão, que aqui ainda se ampliam por força de nossa federação trina.

Outra não é a lição do citado Grégory Kalflèche, professor da Universidade de Toulouse, em livro recente. Ao definir o Direito Urbanístico diz ele que “o direito do urbanismo é um conjunto de instituições e de regras que regem a utilização dos solos (sua afetação, sua proteção e sua estética) extraídas das leis, dos atos administrativos unilaterais (sob a forma de documentos escritos ou de planos) e dos contratos, com o fim de fazer respeitar as propostas de desenvolvimento e de ordenação das coletividades públicas” (p. 24). É que, conclui o autor, o Direito Urbanístico está a serviço da política urbana. No entanto, melhor que “conjunto” será dizer que, em cada Município, deve haver, por mandamento constitucional, um microssistema urbanístico como há um microssistema a tratar, por exemplo, dos tributos municipais.

Postas as coisas assim, fica evidente que esta multiplicidade de fontes do Direito Urbanístico se liga à necessidade de dotar o Poder Público de meios para estabelecer a melhor solução urbanística diante de cada iniciativa de aproveitamento urbanístico, considerado o interesse coletivo. O Direito Urbanístico atua sobretudo com base no poder discricionário da administração pública. Veja-se, por exemplo, o caso de um loteamento, que constitui “operação de urbanismo”4: a aprovação do projeto de uma residência depende de licença mas a aprovação do loteamento não depende de licença – que significa meramente a obediência à lei: depende de autorização o que significa permitir apreciação ampla do projeto ou plano5 tendo em conta não só a lei mas também o desenho urbano, as conveniências ambientais, as restrições do sítio, etc. Por sua importância e permanência, o loteamento, pois, exige análise que ultrapassa a mera vinculação direta e imediata à lei, podendo sua apreciação se dar com base em outros fundamentos como os princípios gerais e específicos do urbanismo enquanto conhecimento, enquanto reflexão – que são fonte material do  Direito Urbanístico. Pela mesma razão de adequação, de inserção harmônica, também os novos arranjos de organização do espaço como o condomínio de lotes, o direito de laje ou o loteamento de acesso controlado dependem de vera autorização do poder público para serem implantados6.

O Direito Urbanístico, portanto, apresenta como fonte formal aquilo que se chama “legislação urbanística”, expressão suficientemente ampla para garantir, diante das circunstâncias urbanísticas dadas, que as “funções sociais da cidade” (art. 182 da CF) sejam devidamente garantidas e protegidas em nome do interesse coletivo. Pode-se pensar que tal concepção traria insegurança jurídica aos proprietários imobiliários. Não é o caso, no entanto, na medida em que toda e qualquer aproveitamento urbanístico do solo (tirando apenas os de baixo impacto) dependerão sempre de consentimento do poder público que controla o conteúdo do direito de propriedade. O direito de aproveitamento da propriedade não é absoluto, como se sabe há mais de um século, uma vez que a parcela integra o espaço urbano, faz parte dele, compõe o contexto da cidade com a qual se relaciona e se comunica. O lote ou a gleba inserem-se em realidades concretas, interagindo intensamente com o entorno: nunca serão abstrações geométricas. Assim, a concepção ampla da expressão “legislação urbanística” decorre da própria natureza flexível desse ramo do Direito público, da sua própria razão de ser como face jurídica do urbanismo, buscando garantir a qualidade de vida nas cidades.

Como diz o preâmbulo da Constituição espanhola de 1978, o poder público deve “asegurar a todos una digna calidad de vida”, o que envolve e determina a ordenação pública do solo urbano por intermédio de uma legislação urbanística sólida e consistente que discipline a atuação de todos os agentes no espaço da cidade. Existe, assim, uma tensão entre aproveitamento do solo, de um lado, e direito à cidade, de outro, que a “legislação urbanística” deve, em cada caso, equacionar com razoabilidade, equilíbrio e justiça social.

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1 Expressão muito usada na França: são as “règles d’urbanisme”. Lá se pode fazer a distinção entre “regra de urbanismo” e “documento de urbanismo”, que são os planos. Aqui os planos são também leis.

2 Pode-se consultar o Code de l’urbanisme, com todas as suas partes integrantes e numa versão atualizada em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGITEXT000006074075/

3 O texto do art. 28 do Estatuto diz: “O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”. Veja-se que a redação, péssima, enfatiza a possibilidade de utilização do instrumento pelo ente local.

4 Na França se diz “opération d’aménagement urbain”, para indicar que se trata de intervenção extensa, abrangente, por oposição à licença ou autorização pontual (“permis de construire”).

5 Lembre-se que o Decreto-lei 58/37, nossa primeira norma nacional sobre loteamento, falava em “plano de loteamento” (v. art. 1º/”c”).

6 Todos esses arranjos foram instituídos no ano de 2017 e dependem de disciplina local para que sejam implantados.

CASTILHO, José Roberto Fernandes. Convite ao Direito Urbanístico e ao Direito Fundiário. São Paulo: Pillares, 2021

CHARLES, Hubert. Droit de l’urbanisme. Paris: PUF, 1997

KALFLÈCHE, Grégory. Droit de l’urbanisme. 2ª ed. Paris: PUF, 2018

LE CORBUSIER. Urbanismo. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (a primeira edição é de 1925)

MORAND-DEVILLER, Jaqueline. La commune, l’urbanisme et le droit. Paris: LGDJ, 2003

REALE Junior, Miguel. Instituições de Direito Penal. 3ª ed. Rio: Forense, 2009

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: RT, 1981 (é a primeira edição dessa obra fundadora)

Fonte:  link: https://www.migalhas.com.br/depeso/362200/o-que-e-legislacao-urbanistica

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