No julgamento do Recurso Extraordinário 796.376/SC [1] , em que prevaleceu o voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado“.
Dito de outro modo, foi definido pelo tribunal que, em relação ao valor do imóvel que superar o capital subscrito a ser integralizado, deve incidir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis, tendo em vista que a imunidade tem como objetivo atingir somente o que fora destinado à integralização do capital social, não podendo se estender àquilo que superar o que será integralizado.
Entretanto, o que se destaca neste artigo diz respeito a parte do voto do ministro Alexandre de Moraes, que, enfatizamos, foi o entendimento vencedor, ou seja, foi acompanhado pela maioria dos julgadores do colendo STF, que considerou que há imunidade na integralização do capital social com bens imóveis independentemente da atividade preponderante da pessoa jurídica que o recebe, por força do disposto no artigo 156, §2º, primeira parte do inciso I, da Constituição Federal, considerando que a ressalva contida no final do referido inciso é restrita à transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, contida na segunda parte do mesmo inciso. Cita-se abaixo o dispositivo a que nos referimos:
“Artigo 156.
(…)
- 2º O imposto previsto no inciso II:
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;”
Durante todo o voto, o ministro Alexandre de Moraes frisa a distinção entre as duas partes constantes no dispositivo constitucional transcrito, argumento que é determinante para toda a fundamentação exposta pelo julgador. Destaca-se o esclarecedor trecho extraído do acórdão:
“A esse respeito, o já mencionado professor HARADA esclarece que as ressalvas previstas na segunda parte do inciso I, do §2º, do artigo 156 da CF/88 aplicam-se unicamente à hipótese de incorporação de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.
É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do §2º, do artigo 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.
Nesses últimos casos, há, da mesma forma, incorporação de bens, mas que decorre da ‘incorporação que é uma operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações’ (artigo 227 da Lei 6.404/1976 — Lei de Sociedades Anônimas); cisão — operação pela qual uma sociedade transfere parte de seu patrimônio para uma ou mais empresas (artigo 229 da Lei das S.A); ou fusão — operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar uma nova sociedade que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações.”
Considerando a sistemática dos precedentes vinculantes, que ganhou força após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, os fundamentos da decisão vinculante são essenciais para se extrair as razões de decidir do julgador, e também possuem força vinculativa, devendo servir de norte e estabelecer os limites para os demais casos levados a conhecimento do Poder Judiciário (DIDIER Jr, 2015) [2] . Portanto, as razões determinantes compõem a tese jurídica a ser seguida, chamada de ratio decidendi.
Assim, mesmo respeitando os entendimentos em sentido contrário ao exposto nesse artigo, em que consideram que a questão tratada no precedente foi diversa (como de fato foi), sendo que a necessidade de avaliação da atividade preponderante para fins de aplicação da imunidade do ITBI foi analisada somente de maneira reflexa, discorda-se desse posicionamento pois a distinção entre as partes do inciso I do §2º do artigo 156, e as respectivas imunidades, foi pormenorizadamente abordada no acórdão e constitui fundamento relevante do precedente, e também deve possuir força vinculante para observância pelos demais tribunais.
Também não se desconhece a disposição do artigo 37 do Código Tributário Nacional, que ainda se encontra em vigor, porém este deve ser interpretado conjuntamente e à luz do inciso I do §2º do artigo 156 da CF/88, dispositivo que, ressalta-se, foi interpretado pelo Supremo Tribunal Federal através do entendimento emanado no julgamento do RE 796.376/SC.
Acaso no Brasil as decisões proferidas pelos tribunais superiores fossem sólidas e respeitadas, e os respectivos precedentes vinculantes fossem de fato observados pelos demais tribunais pátrios e pelas próprias partes envolvidas, após o julgamento em comento, que embora tratasse de situação “distinta” chegou à conclusão final muito pela construção da argumentativa de distinção entre as imunidades tratadas nas partes do inciso I do §2º do artigo 156 da CF/88, não haveria mais discussão sobre a imunidade do ITBI na integralização de capital com bens imóveis, independentemente da atividade preponderante da pessoa jurídica. Mais do que isso, seria possibilitado aos contribuintes lesados nos últimos anos em reaverem as quantias pagas indevidamente dentro do prazo prescricional.
Entretanto, em um país em que os próprios tribunais superiores alteram seus entendimentos em períodos curtos, que discutem modulações de efeitos de formas variadas e até esdrúxulas em alguns casos, dentre outros pontos que não serão neste momento abordado, por óbvio os seus precedentes vinculantes tendem a nem sempre possuir a “vinculância” que se espera.
Em consulta à jurisprudência dos tribunais de justiça espalhados pelos diversos estados da federação [3], ainda se encontram muitas decisões recentes considerando que a imunidade não se aplica à transmissão de bens para as pessoas jurídicas cuja atividade preponderante for a compra e venda desses bens, locação de imóveis ou arrendamento mercantil.
Ou seja, ainda que um julgado da corte suprema tenha sido proferido embasado em uma argumentativa contrária, os contribuintes, aparentemente, continuarão sendo responsabilizados pelo pagamento do ITBI nos casos tratados, respaldados pelo mesmo Poder Judiciário que a pouco entendeu de maneira diversa por meio da sua mais alta corte, cujo papel é justamente a guarda da Constituição, como expressamente dispõe o art. 102 do texto constitucional.
[1] Julgamento concluído em Sessão Virtual realizada em 26/06/2020, transitado em julgado no dia 15/10/2020.
[2] DIDIER Jr, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela; Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 442.
[3] Vide, por exemplo, TJMG: Apelação Cível 1.0024.14.149697-6/001, TJSP: Apelação Cível 1063594-45.2019.8.26.0053, TJRJ: Apelação Cível 50064804420198210013, entre outros.
Matheus Braga de Almeida Silva é advogado, associado à sociedade de advogados Alexandre Papini, Notini, Canaan, Tavares e Romanelli Sociedade de Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Milton Campos (MG), pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Cruzeiro do Sul (SP) e pós-graduando em Direito Empresarial pela Faculdade Legale.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-dez-25/opiniao-itbi-integralizacao-capital-imoveis-precedente-stf