Em 30 de março deste ano, a Presidência da República editou a Medida Provisória 1040, que se autodenominava medida de ”modernização do ambiente de negócios do país”. Registre-se, a propósito, como vai se consolidando a estratégia de marketing político de se darem nomes publicitários às iniciativas legais. Quem poderia ser contra o objetivo de modernização do ambiente de negócios? O despropósito de se dar nomes retumbantes a meros projetos de lei talvez tenha tido seu ápice em 2015, com a ”Lei do Bem”… Decerto quem votasse contra o bem teria parte com o Coisa-Ruim!
Pois bem, a tal medida provisória ”da modernização” trazia um pot-pourri de temas variados e desconexos. No campo societário, havia algumas propostas pontuais, relacionadas à flexibilização na formação do nome empresarial — dispensando que dele constasse obrigatoriamente a descrição do objeto social e permitindo o uso do CNPJ como como nome empresarial — e de tutela dos minoritários nas companhias, ampliando as competências da assembleia geral, tal como definidas no artigo 122 LSA.
No trâmite da iniciativa houve uma invasão de ”jabutis”, as emendas casuísticas e oportunistas encaixadas por grupos de interesse, para tomar carona no trâmite acelerado da MP.
Por essa via sub-reptícia, foram ampliadas as modificações propostas para o Direito Societário, com a inclusão de normas que alteravam substancialmente o regime jurídico dos nossos principais tipos societários, tais como:
a) A extinção do regime jurídico das Eirelis, com sua transformação imediata, por força de lei, em sociedades limitadas unipessoais, afetando mais de um milhão de empresas;
b) A alteração do artigo 1053 CC para prever que, nas hipóteses em que a limitada adote supletivamente o regime jurídico da lei das sociedades anônimas, não se apliquem as regras da dissolução parcial dos artigos 1028 e 1030, não sendo possível, destarte, a retirada voluntária e imotivada, e nem tampouco a exclusão;
c) A adoção da possibilidade de previsão estatutária do voto plural na companhia, embora com algumas condicionantes e restrições, rompendo com a secular adesão brasileira ao princípio one man, one vote, em afronta aos direitos das minorias acionárias que a lei, paradoxalmente, pretende tutelar.
No julgamento da ADI 5127, o STF já afirmou a inconstitucionalidade formal dos ”jabutis”. No campo societário, é particularmente grave a realização de reformas substanciais por essa via antidemocrática e apressada.
O Direito Societário é o eixo da organização institucional de todos os agentes econômicos. Os regimes jurídicos relativos a cada tipo societário afetam a distribuição de poder entre os sócios, seus direitos e obrigações, bem como a relação externa entre a sociedade e aqueles que com ela interajam. Qualquer alteração neles cria profundas tensões em milhões de empresas. A extensão e amplitude dos interesses afetados, a dificuldade de se mensurarem antecipadamente os impactos econômicos da alteração legislativa, e a necessidade de se identificarem as interações sistêmicas entre as normas alteradas e o restante do sistema jurídico, tornam imprudente a tramitação acelerada desse tipo de iniciativa.
Emenda na Câmara dos Deputados veiculou tal proposta, que terminou por ser aprovada pelo plenário, incluindo-se no projeto os seguintes dispositivos:
“Artigo 38 — As sociedades, independentemente de seu objeto ou do órgão em que se encontram registradas, ficam sujeitas às normas legais e infralegais em vigor aplicáveis às sociedades empresárias, ressalvado o disposto nos parágrafos 1º, 2º e 3º deste artigo.
§1º. A equiparação de todas as sociedades às sociedades empresárias, na forma do caput deste artigo, não altera as normas de direito tributário aplicáveis às cooperativas e às sociedades uniprofissionais ou as normas previstas em legislação específica das sociedades cooperativas.
§2º. As sociedades equiparadas às sociedades empresariais nos termos do caput deste artigo somente poderão requerer a recuperação ou a falência previstas na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e demais normativos correlatos, após 5 (cinco) anos contados da data de entrada em vigor desta Lei.
§3º. Observado o disposto no § 2º deste artigo, as obrigações constituídas antes da data de entrada em vigor desta Lei não estarão sujeitas aos efeitos da recuperação ou da falência previstas na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e demais normativos correlatos, considerados extraconcursais os créditos e as respectivas garantias, para todos os fins.
Artigo 39 — O Capítulo I do Subtítulo II do Título II do Livro II da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a denominar-se “Das Normas Gerais das Sociedades”.
Artigo 40 — A partir da entrada em vigor desta Lei, fica proibida a constituição de sociedade simples.
Parágrafo único. Será registrada na Junta Comercial a sociedade simples contratada antes da entrada em vigor desta Lei que ainda não tiver sido registrada.
Artigo 41 — As sociedades simples que se encontram registradas no Registro Civil de Pessoas Jurídicas na entrada em vigor desta Lei podem migrar, a qualquer tempo, por deliberação da maioria societária, para o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”.
Esses dispositivos, derrubados no Senado Federal, foram restabelecidos pela Câmara quando do retorno do projeto, mas terminaram por ser vetados pela Presidência da República.
Inspirando-se no Código Suíço das Obrigações e no Código Civil italiano, nosso legislador de 2002 criou a sociedade simples como sucedâneo da sociedade civil. Trata-se de espécie societária, em contraposição à sociedade empresária, e dela se distinguindo pela inexistência de organização de capital e trabalho. Presta-se a sociedade simples àquelas atividades de natureza intelectual em que os sócios prestem diretamente os serviços, em estruturas singelas (donde o nome simples). Para confundir os alunos da matéria, o código também chamou de sociedade simples um tipo societário que entendeu próprio para o exercício das atividades não empresariais, embora tenha previsto, no artigo 1083, a possibilidade da sociedade simples (enquanto espécie), adotar outros tipos societários. Fixou-se um regime jurídico detalhado para o tipo sociedade simples, lastreado nas características seculares das sociedades de pessoas: a ilimitação da responsabilidade, a restrição ao ingresso de novos sócios, a instabilidade do vínculo societário, a obrigatoriedade do uso de razão social. Previu-se a sua aplicação subsidiária aos outros tipos societários caracterizados pela pessoalidade, inclusive as cooperativas.
Além das distinções internas à estrutura societária, caracterizava-se a sociedade simples pelo registro diferenciado (no cartório de registro civil das pessoas jurídicas) e pela não sujeição aos regimes de insolvência da Lei 11.101. A jurisprudência igualmente tende a afastar, nessas sociedades, a pretensão à inclusão do goodwill no valor dos haveres na dissolução parcial (nesse sentido, AC: 10508579720188260100 SP, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 24/2/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial).
Os dispositivos vetados eliminavam, em primeiro lugar, a sociedade simples enquanto espécie, sujeitando todas as sociedades estritamente ao regime da sociedade empresária, inclusive no que toca à insolvência. Na sequência, também extinguiam o tipo sociedade simples, tornando seu regime jurídico rol de regras gerais para as sociedades.
A distinção de regimes jurídicos entre sociedades empresárias e não empresárias tem fundamento econômico e espelha, no plano societário, a distinção que se faz entre as pessoas físicas exercentes de atividade empresarial e de profissão liberal (distinção aliás mantida pela lei). É razoável manter-se regras diferentes se não há organização de capital e trabalho. De outra parte, pode-se defender a ampliação do regime de insolvência, mas se optarmos por dar esse passo, não deveríamos nos limitar a submeter a ele as sociedades simples, podendo incluir qualquer agente econômico, seja associação ou mesmo o consumidor (como ocorre no direito comparado).
Por outro lado, é inconcebível dizer que as normas das sociedades simples podem se transmutar em normas gerais das sociedades, como pretende a proposta vetada. Ora, uma norma geral tem aplicação indistinta e imediata a todos os tipos societários, operando de modo distinto da mera aplicação subsidiária.
Além disso, como ressaltado nas razões de veto, a extinção das sociedades simples imporia a milhões de agentes econômicos o custo e o significativo trabalho de realizar alterações e atualizações em outros registros cadastrais, em um contexto pandêmico.
Em um regime de tipicidade obrigatória, a extinção do tipo societário das sociedades simples limita a liberdade de organização dos agentes econômicos.
Na plano tributário, a transformação de todas as sociedades simples em empresárias torna menos claro e seguro a identificação de uma sociedade como uniprofissional, sujeitando-as ao risco de serem autuadas pelas fiscos municipais, caso não se submetam ao regime geral de tributação do ISS. Hoje o registro em cartório e a adoção da forma simples gera a presunção, sob fé pública, da inexistência de organização empresarial.
Por fim, a derrubada dos vetos jogaria o exercício da advocacia sob a forma social num limbo jurídico. Seguirá vigente a norma do artigo 15 do Estatuto da Advocacia (Lei 8906, de 1994), que, de modo cogente, determina que a reunião de advogados para o exercício profissional adote a tipo da sociedade simples, igualmente facultando a constituição de Eireli, e impondo o registro na própria OAB. Tal norma seguirá vigente, pois se trata de lei especial, mas sua aplicação será inviabilizada pela extinção da sociedade simples.
A Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) lutou valentemente contra a aprovação, pelo Parlamento, do fim das sociedades simples, e bate-se agora pela manutenção do veto presidencial, dada a insegurança jurídica da mudança proposta, sob o prisma tributário. Uma análise juscomercialista aprofundada da questão reforça a relevância de se preservar a sociedade simples, seja como espécie, seja como tipo societário.